Das amizades e das listas negras
Porto Alegre, 20 de Julho de 2012.
Querido N.,
Faz tempo que eu não escrevo né? Aliás, faz tempo que não escrevo nada mais pessoal aqui no blog ou em qualquer outro lugar. O que não quer dizer que eu não tenha posts pré-prontos na minha cabeça ou que tudo isso não ecoe pelo meu cérebro. Isso – não escrever – tem me sufocado, de uma certa maneira que não sei explicar, apenas sentir. Esse final de semestre foi um dos mais pesados dos últimos anos, ainda mais considerando que era um primeiro semestre e que ainda tem muita água para rolar até o final do ano. Eu sei também que isso não é desculpa, mas essa vida adulta de trabalhar, viajar, cuidar da casa, etc, não é nada fácil, então acho que estou perdoada considerando meu longo histórico de dificuldades com coisas de ordem prática da vida pós-adolescente.
Não pense que estou escrevendo porque é dia do amigo, embora a gente comemorasse essa data – como tantas outras que costumávamos comemorar – com alguma trilha com pérolas do trash. Tampouco acredite que escrevo por conta do meu inferno astral ou porque quero comentar a novela. Ah sim, e teve a leitura de Um dia do David Nicholls que eu acho que tu irias gostar, apesar da chatice/baixa-autoestima inicial de Emma e das bebedeiras de Dexter. Não é nada disso, mas é tudo isso junto e misturado e muitas outras coisas. Por um lado, me sinto envergonhada e imagino que se tu estivesse por aqui faria cara de desaprovação em me ver escrevendo para alguém que desapareceu do planeta há 7 anos. Sim, sei bem que tu acreditavas na finitude total. Por outro lado, sei que escrevo para relembrar para mim mesma, como uma forma de matar a saudade de um jeito um tanto egoísta e até meio narcisístico de leonina.
Não tento projetar como seria se tu estivesse aqui, pois de 2005 para cá minha vida mudou tanto e tantas vezes que até eu mesma fico tonta. Também é fato que sempre gostei das mudanças e que raramente trilhei os caminhos mais fáceis, e não por escolha, mas pura incapacidade em ser diferente. Lembro que talvez esse tenha sido um dos pontos de maior intersecção e originário de nossa amizade.
As coisas estão bem por aqui depois de uma turbulência de quase dois anos. Pois é, veja bem, no próximo mês já completo dois anos de volta a terrinha. Foi um longo processo de readaptação que finalmente se encerra. Dia desses passei em frente ao prédio onde trabalhamos juntos. Pena que era de noite e não tinha como entrar no elevador xanadunesco. Lembrei das nossas caminhadas dali até o shopping para tomar um café enquanto discorríamos sobre a “lista negra”.
A lista negra foi algo que aprendi contigo, é o famoso caderninho (de uns tempos para cá os hipsters só falam em moleskine, mas para mim é caderninho) no qual íamos riscando pessoas das quais nos afastamos deliberadamente ao longo dos anos devido a fatores que nos incomodavam. A lista negra inclui desde os que param de responder a nossas ligações ou mensagens, aos que nos aprontam coisas que nos deixam chateados e até mesmo àqueles com quem a gente já não mais se identifica ou cujo silêncio constrange no meio da conversa.
É engraçado que quanto o mais o tempo passa, mais pessoas vão sendo adicionadas a essa listinha. Alguns, os “mais espiritualizados” ou metidos a guru de auto-ajuda dizem que isso faz mal ou tem aquele papo que de que retorna para você. Mas não é assim, a listinha é um ato lúdico de total desapego. Não é exatamente ódio, porque o ódio ainda é um tipo de apego, é simplesmente deixar para trás porque não tem mais jeito, por mais que a gente tente [momento misantropia, eu quero uma pra viver]. Enfim, só posso dizer que a lista foi aumentando, como tu mesmo me prevenira que aumentaria à medida que vamos invadindo os trinta e poucos quase quarenta. Incrível tua lucidez ao me dizer isso com apenas 32.
Mas também há compensações, criamos novos laços, outros grupos se formam, sobretudo em torno de alguns interesses afins. Minha psi me disse uns tempos atrás, “congrega outro grupo”, eu fiz e o resultado está sendo interessante, tenho visões mais claras agora sobre o que realmente esperar. O grupo está espalhado, a maioria dele sequer mora em Porto Alegre, o que também é legal e impulsiona nas viagens mas também dificulta um contato mais próximo, como que tínhamos de ao menos uma vez por semana fazer algo, tipo almoçar ou ir ao cinema. Se bem que, com o volume de trabalho de todos hoje em dia, não sei se conseguiríamos manter esse ritmo.
É claro que é uma tarefa bem complicada medir esses afetos, porque temos a sensação de que aquelas pessoas com que passamos nosso “coming of age” são as pessoas que realmente importam (dá uma olhada nesse artigo do NYTimes que trata exatamente dessas dificuldades de amizades depois de uma certa idade, no caso, a minha). Tanto isso é parcialmente verdade que cá estou , escrevendo para mim mesma no meu blog, simulando uma ficção de que é para o meu amigo morto. Alguns diriam que estou inventando e que essa amizade nunca existiu. Alguns diriam que vivo do passado e que não devo ter mais amigos de verdade. Outros diriam que sou mórbida. Nada disso é 100% verdade. Trevosa eu sempre fui, então posso até tomar como elogio, perder o bom humor, jamais! De qualquer forma, não vejo como celebrar a vida sem ter a certeza da morte nos rondando.
Ontem de madrugada zappeando parei em uma matéria tipo arquivo confidencial sobre a Rita Lee e, obviamente, conhecia boa parte das histórias (não porque eu tenha lido, mas sei contadas por ti). Sei por tabela de ter escutado tu falando sobre ela por anos a fio. Claro que nos últimos anos sei que tu meio que renegou a véia e te desfez do material do fã-clube e tudo mais. Contudo, a matéria estava divertida e mostrava até uma das personagens dela, a Regina Célia (acho que é isso), o que me levou ao Neni. Sinto saudades do Neni também, mande lembranças a ele.
É esquisito isso né, fomos amigos durante 10 anos e foste embora há sete, daqui a pouco a tua não-presença empata e até ultrapassa o tempo em que convivemos. Mas isso não afeta nada porque a maneira como percebemos o tempo não é exatamente a maneira como ele transcorre. Donnie Darko mostra bem isso. Além do mais, aqueles foram anos importantes para o que me tornei, tempo de construção de identidades, de escolhas, e, aqui estou. Esses encontros com o outro ajudam a nos definir e a delinear o que é realmente importante… como na letra de Endless Skies do VNV Nation, é assim que vejo o que aquele período significou:
The most fragile of things
Captivates and embraces you
Surrender and be witness
To this rarest of moments
You live within the sense
Of the order of things
What is truth
What is important
What defines you
Não estou sendo nostálgica quando falo daquele período, da metade dos anos 90 à metade dos anos 00, mas essa retrospectiva redimensiona o presente e nos faz ver que nada/tudo pode ser pior/melhor. No geral é presente 1 x passado zero.
Ando bem mais contida do que já fui, em vários aspectos. Se bem que hoje saí com casaco vermelho (eu tenho casaco vermelho? piada interna) e até peguei semi-pesado em uma polêmica internética. Nada demais para quem me conhecia nos anos 90, mas sabe como é às vezes resvala uma fala mais forte ou uma roupa mais extravagante. “Comprei com o pacote” (piada interna de novo). Há umas duas semanas vi uma guria que tu detestava na rua. Por instinto, atravessei para o outro lado e fiz que não a vi. Eu poderia ter sido mais adulta e passado como se nada tivesse acontecido, afinal, a querela foi 99/00, mas sei lá, foi meio que natural. Sabe como são os amigos quando tomam a defesa e, de uma forma ou de outra, eu também estava ” no bolo”. Depois dei risada sozinha pensando no quanto todo aquele drama soava besta. Mas claro, daquela Adriana para essa Adriana há todo um mundo de experiências incluindo morar em diferentes cidades/ países, perder meu melhor amigo, defender uma tese, casar e perder um irmão, o pai e a mãe, me mudar várias vezes, então praticamente qualquer briga idiota ou discussão é bem insignificante perto disso.
Continuo ouvindo as minhas músicas (velhas e novas), assistindo os meus seriados e filmes, lendo meus livros, passando muito tempo online, tendo apreço pelo lado trash e pelo underground sem esquecer do mainstream, pintando as unhas das mais diversas cores e sendo uma tia coruja, ou seja, a mesma de sempre. Por outro lado, tenho até – excetuando o frio exagerado – conseguido levantar cedo sem despertador, diminuído a carne vermelha (é, eu, quem diria?), ido na feira livre e gostado, sendo mais tolerante comigo mesmo, leia-se, totalmente diferente.
Isso tudo para dizer que embora muitas vezes eu soe cética e que a lista negra tenha aumentado, ainda acredito que algumas pessoas que passam pela nossa vida, realmente importam, fazem a diferença e nos transformam profundamente. São pessoas que nos acolhem e nos entendem sem nos julgar, o que não quer dizer que sejam cegas aos nossos defeitos e vice-versa. Não gosto de estar em uma relação de amizade na qual sinta que há alguém ” mandando” em mim ou tentando impor seu jeito de pensar. Sempre gostei da troca de ideias, do embate limpo sem atitudes escorregadias através do entorno. Sinto falta disso, como sinto dos aniversários temáticos, das análises de videoclipes cafonas, das trilhas sonoras e claro, da tua amizade. mas como diria Agnetha, tudo acaba em uma canção: I´m nothing special, in fact I´m a bit of a bore!
São 02h49, amanhã tenho pareceres por terminar mas não perdi a mania de dormir tarde. Sim, cada ano que passa fico ainda mais parecida com seu Ivon nesse aspecto. Ainda bem que não herdei as olheiras, se bem que uma boa base resolve 😉
BTW, antes que eu me esqueça, não dá para ignorar o clichê: feliz dia do amigo!
A.